Breaking
30 Apr 2025, Wed

Crianças e adolescentes encontram no Conselho Tutelar canal para denunciar abusos


Nos três primeiros meses do ano, 58 mil violações foram registradas no país. Conheça o passo a passo dos órgãos públicos no atendimento às vítimas

O Conselho Tutelar atua na garantia dos direitos das crianças e adolescentes  – Foto: Getty Images/NDO Conselho Tutelar atua na garantia dos direitos das crianças e adolescentes  – Foto: Getty Images/ND

Há dois anos, em Faxinal do Guedes, no Oeste de Santa Catarina, entre tantos casos que acompanha desde 2016, uma situação chamou a atenção do presidente da Associação Catarinense de Conselheiros Tutelares, Valdecir Rodrigues. No atendimento para averiguar a denúncia de que uma criança de três anos estava sendo agredida, a equipe foi recebida pela mãe e pelo padrasto da menina, que negaram as acusações.

No entanto, a suspeita ganhou força com o comportamento da criança, que não saía de perto dos profissionais. “Ela veio do meu lado e ergueu a mão, e a conselheira que estava comigo observou que a criança estava com manchas. Ela pediu para vir perto e levantou a blusa da criança, que estava com muitos hematomas. Ela havia sido espancada”, contou.

O passo seguinte foi o encaminhamento da criança para o serviço de saúde, e do caso para o Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), onde a mãe foi advertida. A família foi incluída nos atendimentos da unidade e uma notificação foi enviada ao MPSC (Ministério Público de Santa Catarina).

Assim como a menina que, com apenas três anos encontrou uma forma de denunciar o abuso, outras tantas crianças e adolescentes recorrem ao Conselho Tutelar todos os dias, e os dados escancaram a realidade de muitos lares e instituições.

Nos três primeiros meses deste ano, foram registradas 58 mil violações pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania em todo o país.

O que é o Conselho Tutelar

Criado pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Conselho Tutelar é um órgão autônomo que tem como princípio zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. Seguindo as diretrizes estipuladas na lei, os conselheiros são os responsáveis por verificar se as violações denunciadas são verdadeiras.

Em Santa Catarina, nos três primeiros meses de 2025, 8.939 menores solicitaram ajuda para o cumprimento da lei em situações que englobam quesitos familiares, educacionais, o direito à vida, à saúde, privação de liberdade e dignidade, profissionalização e proteção no trabalho.

Até o momento, março contou com o maior número de atendimentos, com 3.443 ocorrências. Em todos os meses, a maior parte das assistências foi voltada a meninas, com 4.602 solicitações.

Entre as causas, a convivência familiar e comunitária é a principal queixa, seguida da categoria educação, cultura, esporte e lazer.

Como funciona a atuação do Conselho Tutelar

Previsto no artigo 131 do ECA, o Conselho Tutelar é um órgão que atua para assegurar direitos básicos, como o acesso à educação, saúde e serviços públicos. Por se tratar de um colegiado, quando o grupo recebe ou identifica uma denúncia, as decisões são tomadas em conjunto, levando em consideração as providências que devem ser aplicadas.

“As medidas não deram certo, não aderiram, vamos recorrer ao Ministério Público para ingressar com uma ação judicial, obrigando aquela família a cumprir com a responsabilidade. Isso serve para os familiares, o poder público e as instituições, porque não é só a família que viola os direitos”, explica o presidente da associação.

De forma simplificada, os profissionais recebem o comunicado de violação e fazem uma análise do caso. O próximo passo é a busca pelos envolvidos e a escuta do jovem. Em seguida, são aplicadas as medidas cabíveis — ação que segue com o acompanhamento e a fiscalização. Após o restabelecimento da garantia legal, o atendimento é finalizado.

Além dos profissionais, as situações denunciadas devem ser identificadas por aqueles que fazem parte do cotidiano da vítima, como reforça o Artigo 4 do ECA.

“Que a sociedade compreenda que é um órgão de defesa do direito das crianças e adolescentes, sendo a porta de entrada dessas violações. Não podemos ser a única porta, todos os serviços do município devem receber as demandas e devem comunicar o Conselho Tutelar quando precisar de medidas de aplicação”, diz Rodrigues.

Crianças vítimas de negligência

Na compreensão do advogado Iago Salles, existem contextos que evidenciam negligências em cuidados básicos. “Alimentação e roupas, abandono, trabalho infantil e maus-tratos, como violência física e psicológica, são situações que configuram a violação à saúde, dignidade e bem-estar.”

Sobre a ligação com os demais serviços públicos, o presidente da associação reforça a importância de manter um atendimento integrado. “A escola é o lugar em que mais chegam as violações de direitos, porque são eles que estão todos os dias com os adolescentes e, muitas vezes, chegam lá com algum queimado no braço ou alguma marca”.

Por isso, em casos suspeitos, uma das alternativas é a denúncia anônima, canal que pode ser acessado por qualquer pessoa.

“O Conselho Tutelar não vai tirar o filho de ninguém, isso temos que deixar claro. A população tem que saber o que a lei traz, que é dever de todos proteger os direitos das crianças e adolescentes”, explica Rodrigues.

O conselho tutelar atua no atendimento de familiares, instituições e órgãos públicosO Conselho Tutelar atua no atendimento de familiares, instituições e órgãos públicos  – Foto: Getty Images/ND

O papel das escolas na proteção dos jovens

No âmbito escolar, a comunicação com a organização é feita quando existem dúvidas. A primeira etapa é a conversa com a família, e nos casos em que há confirmação ou falta de interesse, os conselheiros são acionados.

“É papel da escola garantir o direito daquela criança e, muitas vezes, os responsáveis não aceitam isso. Tentamos desmistificar a função do Conselho Tutelar, porque muitos pensam que é um órgão punitivo, mas não: ele age em função dos direitos”, comenta a diretora da Escola Básica Municipal Adotiva Liberato Valentim, em Florianópolis, Daiana Alflen Mendes.

Escola Básica Municipal Adotiva Liberato Valentim – Foto: Diorgenes Pandini/Especial para o NDEscola Básica Municipal Adotiva Liberato Valentim – Foto: Diorgenes Pandini/Especial para o ND

Para que as informações fiquem registradas, a unidade é responsável por preencher as atas após as conversas, documentos que também são encaminhados para o órgão. “Às vezes, é uma dor que vai despertar a atenção: a forma de chegar, a mudança no comportamento, uma criança que é muito festiva e acaba ficando introvertida, começa a brigar e xingar”, pontua a profissional.

Para a neuropsicopedagoga e professora Ana Paula Schmitt Santiago, que já acionou  a instituição quando recebeu ameaças de uma aluna pelo WhatsApp, em áudios que foram enviados pela estudante em grupos de conversa, é preciso estar atento às mudanças:

“É importante observar se a criança sorri, interage, se movimenta, percebe a si e ao outro, e seus gostos. Cuidado com o isolamento, excesso de tela, falta de interação, jogos violentos, não querer ir à escola ou sair de casa”.

Na escola localizada no Sul da ilha, a diretora comenta que existem 30 casos em andamento. Além das agressões, a vulnerabilidade social também é um quesito observado. “A Costeira (bairro) sofreu com o empobrecimento. Temos crianças com boas bases, mas temos alunos pobres, que dependem da alimentação dentro da escola”, esclarece a educadora, que enxerga sua função como agente social, consciente dos direitos daqueles que são menores de idade.

No quesito aprendizado, o desempenho pode ficar comprometido por conta dos abusos, já que a performance depende da conexão emocional, como diz Ana Paula. “Se sofre violência doméstica ou está sofrendo bullying e não tem amparo, não vai conseguir se desenvolver por completo, pois tem algo que a está deixando triste, insegura. Isso faz com que não consiga aprender, se concentrar ou interagir”, finaliza a neuropsicopedagoga.

Parceria com o Ministério Público

O MPSC desempenha um papel fundamental no fortalecimento dos Conselhos Tutelares. Segundo o coordenador do Conselho Consultivo do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude e Educação, Mateus Minuzzi, a instituição é o “órgão de fiscalização da atuação do Conselho Tutelar” e tem como missão assegurar que esses equipamentos funcionem de maneira adequada para proteger os direitos previstos nos códigos e estatutos.

“O ECA é uma lei completa, que vai muito além da parte criminal, envolvendo questões de saúde, educação e proteção social. Ele coloca, de maneira bem clara, os papéis de cada ator nesse sistema, criando a famosa rede de proteção em que todos os órgãos estão interligados, trabalhando de forma cooperativa”, afirma Minuzzi.

O MP é o responsável por garantir a eficácia do sistema, tanto na fiscalização do trabalho do colegiado, quanto no encaminhamento de casos que demandem intervenção judicial.

“O Conselho Tutelar pode observar uma situação em que é necessária uma medida de afastamento do lar, por exemplo, e para isso, acionará o Ministério Público para garantir que essa situação chegue ao Judiciário e seja resolvida de forma legal, com a devida audiência e deliberação do juiz”, exemplifica.

Além disso, também tem o papel de supervisão, assegurando o funcionamento de forma adequada e eficiente. “Temos um trabalho constante de fiscalização, verificando se as ações estão sendo corretamente executadas. Caso contrário, pode ser feita uma representação para ele deixar o cargo ou até mesmo um processo judicial para garantir que o trabalho seja cumprido de acordo com a lei, ou até mesmo um outro modo de atuação que está sendo mais valorizado que é sentar e conversar em conversas intersetoriais com toda a rede de proteção para organizar”, afirma o coordenador.

310 Conselhos Tutelares em SC

Em Santa Catarina, há 310 Conselhos Tutelares distribuídos por todos os municípios. De acordo com dados divulgados pelo MPSC durante o evento “Políticas para as infâncias e adolescências em Santa Catarina: indicadores, comunicação e produção de cenários”, realizado no mês passado, 84% das unidades iniciaram a nova gestão com o colegiado completo, o que garante maior eficiência no atendimento às demandas da infância e juventude.

Além disso, a capacitação dos conselheiros tutelares têm avançado ao longo dos anos, com um número crescente de cursos de formação e qualificação, como o “Qualifica CT”, oferecido gratuitamente pelo MPSC.

Outro aspecto positivo é a ampliação dos fluxos de atendimento integrados para crianças vítimas de violência. Atualmente, 66,5% dos municípios possuem protocolos estabelecidos para todos os tipos de violência, o que fortalece a resposta rápida e eficaz da rede de proteção.

O Estado também tem apresentado progressos na estruturação dos Conselhos Tutelares, com mais de 50% das sedes já devidamente equipadas para oferecer um atendimento adequado à população.

Embora o sistema de proteção em Santa Catarina tenha avançado, o coordenador reconhece que existem desafios estruturais. “Em Santa Catarina, a estrutura do serviço é boa, mas, como em outros lugares do Brasil, enfrenta dificuldades estruturais. Algumas comunidades, por exemplo, ainda têm dificuldades com o fornecimento de serviços qualificados, como um psicólogo ou educador especializado”, pondera Minuzzi.

Em uma atuação preventiva para lidar com a grande demanda, Minuzzi destaca a implementação de sistemas como o “Apoia”, voltado para a evasão escolar. Esse sistema foi desenvolvido pelo Ministério Público para acompanhar os alunos que estão fora da escola, de forma a intervir o mais rápido possível.

“Para lidarmos com essa demanda enorme que existe, primeiro fazemos um ponto de corte em relação ao tipo de demanda que chega na promotoria. E, especialmente, uma coisa que é muito batida, é trabalhar coletivamente, organizar a rede para que o problema possa ser resolvido quando surja, sem necessidade de ter processo judicial depois”, finalizou Minuzzi.

O atendimento integral é uma das etapas do processo de acolhimento das vítimas – Foto: Getty Images/iStockphoto/NDO atendimento integral é uma das etapas do processo de acolhimento das vítimas – Foto: Getty Images/iStockphoto/ND

Responsabilidades municipais

Além da parceria com a escola ou com o Ministério Público, o órgão possui uma ligação administrativa com a prefeitura, que deve ser a responsável pelas despesas da equipe, como frisa o Artigo 4 da resolução nº 231 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).

Em Florianópolis, a Secretaria Municipal de Assistência Social fica com as despesas. “Somos responsáveis por garantir a estrutura necessária para o funcionamento, como o imóvel para servir de sede e os equipamentos de trabalho — computador, impressora e material de papelaria”.

No caso da escolha dos conselheiros que serão empossados, o poder municipal também atua, podendo incluir requisitos para o cargo. Na Capital, as exigências são: ser maior de 21 anos; residir no local; ter reconhecida a idoneidade moral; experiência na área ou especialização; conclusão do ensino superior; não ter sido suspenso no mesmo cargo ou ocupar funções no CMDCA (Conselho Municipal da Criança e do Adolescente).

Atualmente, Florianópolis conta com quatro conselhos, em processo para a criação da quinta unidade, como assegura a resolução nº 231, que apresenta a média de um centro de atendimento para cada 100 mil habitantes.

“O CMDCA abriu edital para a eleição de novos conselheiros tutelares suplentes, para atuarem até 2028. O processo já está em andamento e tem finalização prevista para agosto – incluindo a eleição e a capacitação dos candidatos. A nova unidade vai atender os bairros do Norte”, explica a Secretaria Municipal de Assistência Social.

Para o coordenador Mateus Minuzzi, existem as dificuldades de municípios como Florianópolis, onde a demanda pelo serviço é alta, e a novidade é vista como uma ação positiva para o sistema de proteção  “Se conseguirmos implantar esse quinto conselho tutelar, certamente ajudará a dar mais suporte e maior inserção na comunidade, facilitando o atendimento das crianças e adolescentes, além de dar mais visibilidade e proteção às famílias”, defende Minuzzi.

O que está previsto na lei?

Avaliando as diretrizes e ordens que compõem a atuação do órgão, como o ECA, o advogado Iago Salles reforça que, perante a lei, os jovens não possuem os meios para assegurar que seus direitos sejam respeitados — seja por limitações financeiras ou até mesmo jurídicas, reforçando a relevância do conselho tutelar.

“Exerce um papel de conhecedor da realidade das famílias, harmonizador da atuação do poder público em favor da criança e do adolescente, e encaminhador quando depende de pronunciamento ou representação pelas autoridades”, complementa o profissional.

De acordo com o Artigo 24 da resolução nº 231, a autonomia da instituição deve ser efetivada em nome da população. “O conselheiro é livre para promover a fiscalização de entidades de atendimento, iniciar procedimentos de apuração de irregularidades em tais entidades ou de infrações à integridade da criança e do adolescente e, ainda, em atuação com o município, participar ativamente da elaboração de políticas públicas de proteção aos menores”, pontua Salles, que reforça o direito à vida, à saúde, à liberdade, à dignidade e à convivência familiar e comunitária como diretrizes do ECA.

Nos três primeiros meses do ano, 58 mil violações foram registradas no país. Conheça o passo a passo dos órgãos públicos no atendimento às vítimas

O Conselho Tutelar atua na garantia dos direitos das crianças e adolescentes  – Foto: Getty Images/NDO Conselho Tutelar atua na garantia dos direitos das crianças e adolescentes  – Foto: Getty Images/ND

Há dois anos, em Faxinal do Guedes, no Oeste de Santa Catarina, entre tantos casos que acompanha desde 2016, uma situação chamou a atenção do presidente da Associação Catarinense de Conselheiros Tutelares, Valdecir Rodrigues. No atendimento para averiguar a denúncia de que uma criança de três anos estava sendo agredida, a equipe foi recebida pela mãe e pelo padrasto da menina, que negaram as acusações.

No entanto, a suspeita ganhou força com o comportamento da criança, que não saía de perto dos profissionais. “Ela veio do meu lado e ergueu a mão, e a conselheira que estava comigo observou que a criança estava com manchas. Ela pediu para vir perto e levantou a blusa da criança, que estava com muitos hematomas. Ela havia sido espancada”, contou.

O passo seguinte foi o encaminhamento da criança para o serviço de saúde, e do caso para o Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), onde a mãe foi advertida. A família foi incluída nos atendimentos da unidade e uma notificação foi enviada ao MPSC (Ministério Público de Santa Catarina).

Assim como a menina que, com apenas três anos encontrou uma forma de denunciar o abuso, outras tantas crianças e adolescentes recorrem ao Conselho Tutelar todos os dias, e os dados escancaram a realidade de muitos lares e instituições.

Nos três primeiros meses deste ano, foram registradas 58 mil violações pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania em todo o país.

O que é o Conselho Tutelar

Criado pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Conselho Tutelar é um órgão autônomo que tem como princípio zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. Seguindo as diretrizes estipuladas na lei, os conselheiros são os responsáveis por verificar se as violações denunciadas são verdadeiras.

Em Santa Catarina, nos três primeiros meses de 2025, 8.939 menores solicitaram ajuda para o cumprimento da lei em situações que englobam quesitos familiares, educacionais, o direito à vida, à saúde, privação de liberdade e dignidade, profissionalização e proteção no trabalho.

Até o momento, março contou com o maior número de atendimentos, com 3.443 ocorrências. Em todos os meses, a maior parte das assistências foi voltada a meninas, com 4.602 solicitações.

Entre as causas, a convivência familiar e comunitária é a principal queixa, seguida da categoria educação, cultura, esporte e lazer.

Como funciona a atuação do Conselho Tutelar

Previsto no artigo 131 do ECA, o Conselho Tutelar é um órgão que atua para assegurar direitos básicos, como o acesso à educação, saúde e serviços públicos. Por se tratar de um colegiado, quando o grupo recebe ou identifica uma denúncia, as decisões são tomadas em conjunto, levando em consideração as providências que devem ser aplicadas.

“As medidas não deram certo, não aderiram, vamos recorrer ao Ministério Público para ingressar com uma ação judicial, obrigando aquela família a cumprir com a responsabilidade. Isso serve para os familiares, o poder público e as instituições, porque não é só a família que viola os direitos”, explica o presidente da associação.

De forma simplificada, os profissionais recebem o comunicado de violação e fazem uma análise do caso. O próximo passo é a busca pelos envolvidos e a escuta do jovem. Em seguida, são aplicadas as medidas cabíveis — ação que segue com o acompanhamento e a fiscalização. Após o restabelecimento da garantia legal, o atendimento é finalizado.

Além dos profissionais, as situações denunciadas devem ser identificadas por aqueles que fazem parte do cotidiano da vítima, como reforça o Artigo 4 do ECA.

“Que a sociedade compreenda que é um órgão de defesa do direito das crianças e adolescentes, sendo a porta de entrada dessas violações. Não podemos ser a única porta, todos os serviços do município devem receber as demandas e devem comunicar o Conselho Tutelar quando precisar de medidas de aplicação”, diz Rodrigues.

Crianças vítimas de negligência

Na compreensão do advogado Iago Salles, existem contextos que evidenciam negligências em cuidados básicos. “Alimentação e roupas, abandono, trabalho infantil e maus-tratos, como violência física e psicológica, são situações que configuram a violação à saúde, dignidade e bem-estar.”

Sobre a ligação com os demais serviços públicos, o presidente da associação reforça a importância de manter um atendimento integrado. “A escola é o lugar em que mais chegam as violações de direitos, porque são eles que estão todos os dias com os adolescentes e, muitas vezes, chegam lá com algum queimado no braço ou alguma marca”.

Por isso, em casos suspeitos, uma das alternativas é a denúncia anônima, canal que pode ser acessado por qualquer pessoa.

“O Conselho Tutelar não vai tirar o filho de ninguém, isso temos que deixar claro. A população tem que saber o que a lei traz, que é dever de todos proteger os direitos das crianças e adolescentes”, explica Rodrigues.

O conselho tutelar atua no atendimento de familiares, instituições e órgãos públicosO Conselho Tutelar atua no atendimento de familiares, instituições e órgãos públicos  – Foto: Getty Images/ND

O papel das escolas na proteção dos jovens

No âmbito escolar, a comunicação com a organização é feita quando existem dúvidas. A primeira etapa é a conversa com a família, e nos casos em que há confirmação ou falta de interesse, os conselheiros são acionados.

“É papel da escola garantir o direito daquela criança e, muitas vezes, os responsáveis não aceitam isso. Tentamos desmistificar a função do Conselho Tutelar, porque muitos pensam que é um órgão punitivo, mas não: ele age em função dos direitos”, comenta a diretora da Escola Básica Municipal Adotiva Liberato Valentim, em Florianópolis, Daiana Alflen Mendes.

Escola Básica Municipal Adotiva Liberato Valentim – Foto: Diorgenes Pandini/Especial para o NDEscola Básica Municipal Adotiva Liberato Valentim – Foto: Diorgenes Pandini/Especial para o ND

Para que as informações fiquem registradas, a unidade é responsável por preencher as atas após as conversas, documentos que também são encaminhados para o órgão. “Às vezes, é uma dor que vai despertar a atenção: a forma de chegar, a mudança no comportamento, uma criança que é muito festiva e acaba ficando introvertida, começa a brigar e xingar”, pontua a profissional.

Para a neuropsicopedagoga e professora Ana Paula Schmitt Santiago, que já acionou  a instituição quando recebeu ameaças de uma aluna pelo WhatsApp, em áudios que foram enviados pela estudante em grupos de conversa, é preciso estar atento às mudanças:

“É importante observar se a criança sorri, interage, se movimenta, percebe a si e ao outro, e seus gostos. Cuidado com o isolamento, excesso de tela, falta de interação, jogos violentos, não querer ir à escola ou sair de casa”.

Na escola localizada no Sul da ilha, a diretora comenta que existem 30 casos em andamento. Além das agressões, a vulnerabilidade social também é um quesito observado. “A Costeira (bairro) sofreu com o empobrecimento. Temos crianças com boas bases, mas temos alunos pobres, que dependem da alimentação dentro da escola”, esclarece a educadora, que enxerga sua função como agente social, consciente dos direitos daqueles que são menores de idade.

No quesito aprendizado, o desempenho pode ficar comprometido por conta dos abusos, já que a performance depende da conexão emocional, como diz Ana Paula. “Se sofre violência doméstica ou está sofrendo bullying e não tem amparo, não vai conseguir se desenvolver por completo, pois tem algo que a está deixando triste, insegura. Isso faz com que não consiga aprender, se concentrar ou interagir”, finaliza a neuropsicopedagoga.

Parceria com o Ministério Público

O MPSC desempenha um papel fundamental no fortalecimento dos Conselhos Tutelares. Segundo o coordenador do Conselho Consultivo do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude e Educação, Mateus Minuzzi, a instituição é o “órgão de fiscalização da atuação do Conselho Tutelar” e tem como missão assegurar que esses equipamentos funcionem de maneira adequada para proteger os direitos previstos nos códigos e estatutos.

“O ECA é uma lei completa, que vai muito além da parte criminal, envolvendo questões de saúde, educação e proteção social. Ele coloca, de maneira bem clara, os papéis de cada ator nesse sistema, criando a famosa rede de proteção em que todos os órgãos estão interligados, trabalhando de forma cooperativa”, afirma Minuzzi.

O MP é o responsável por garantir a eficácia do sistema, tanto na fiscalização do trabalho do colegiado, quanto no encaminhamento de casos que demandem intervenção judicial.

“O Conselho Tutelar pode observar uma situação em que é necessária uma medida de afastamento do lar, por exemplo, e para isso, acionará o Ministério Público para garantir que essa situação chegue ao Judiciário e seja resolvida de forma legal, com a devida audiência e deliberação do juiz”, exemplifica.

Além disso, também tem o papel de supervisão, assegurando o funcionamento de forma adequada e eficiente. “Temos um trabalho constante de fiscalização, verificando se as ações estão sendo corretamente executadas. Caso contrário, pode ser feita uma representação para ele deixar o cargo ou até mesmo um processo judicial para garantir que o trabalho seja cumprido de acordo com a lei, ou até mesmo um outro modo de atuação que está sendo mais valorizado que é sentar e conversar em conversas intersetoriais com toda a rede de proteção para organizar”, afirma o coordenador.

310 Conselhos Tutelares em SC

Em Santa Catarina, há 310 Conselhos Tutelares distribuídos por todos os municípios. De acordo com dados divulgados pelo MPSC durante o evento “Políticas para as infâncias e adolescências em Santa Catarina: indicadores, comunicação e produção de cenários”, realizado no mês passado, 84% das unidades iniciaram a nova gestão com o colegiado completo, o que garante maior eficiência no atendimento às demandas da infância e juventude.

Além disso, a capacitação dos conselheiros tutelares têm avançado ao longo dos anos, com um número crescente de cursos de formação e qualificação, como o “Qualifica CT”, oferecido gratuitamente pelo MPSC.

Outro aspecto positivo é a ampliação dos fluxos de atendimento integrados para crianças vítimas de violência. Atualmente, 66,5% dos municípios possuem protocolos estabelecidos para todos os tipos de violência, o que fortalece a resposta rápida e eficaz da rede de proteção.

O Estado também tem apresentado progressos na estruturação dos Conselhos Tutelares, com mais de 50% das sedes já devidamente equipadas para oferecer um atendimento adequado à população.

Embora o sistema de proteção em Santa Catarina tenha avançado, o coordenador reconhece que existem desafios estruturais. “Em Santa Catarina, a estrutura do serviço é boa, mas, como em outros lugares do Brasil, enfrenta dificuldades estruturais. Algumas comunidades, por exemplo, ainda têm dificuldades com o fornecimento de serviços qualificados, como um psicólogo ou educador especializado”, pondera Minuzzi.

Em uma atuação preventiva para lidar com a grande demanda, Minuzzi destaca a implementação de sistemas como o “Apoia”, voltado para a evasão escolar. Esse sistema foi desenvolvido pelo Ministério Público para acompanhar os alunos que estão fora da escola, de forma a intervir o mais rápido possível.

“Para lidarmos com essa demanda enorme que existe, primeiro fazemos um ponto de corte em relação ao tipo de demanda que chega na promotoria. E, especialmente, uma coisa que é muito batida, é trabalhar coletivamente, organizar a rede para que o problema possa ser resolvido quando surja, sem necessidade de ter processo judicial depois”, finalizou Minuzzi.

O atendimento integral é uma das etapas do processo de acolhimento das vítimas – Foto: Getty Images/iStockphoto/NDO atendimento integral é uma das etapas do processo de acolhimento das vítimas – Foto: Getty Images/iStockphoto/ND

Responsabilidades municipais

Além da parceria com a escola ou com o Ministério Público, o órgão possui uma ligação administrativa com a prefeitura, que deve ser a responsável pelas despesas da equipe, como frisa o Artigo 4 da resolução nº 231 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).

Em Florianópolis, a Secretaria Municipal de Assistência Social fica com as despesas. “Somos responsáveis por garantir a estrutura necessária para o funcionamento, como o imóvel para servir de sede e os equipamentos de trabalho — computador, impressora e material de papelaria”.

No caso da escolha dos conselheiros que serão empossados, o poder municipal também atua, podendo incluir requisitos para o cargo. Na Capital, as exigências são: ser maior de 21 anos; residir no local; ter reconhecida a idoneidade moral; experiência na área ou especialização; conclusão do ensino superior; não ter sido suspenso no mesmo cargo ou ocupar funções no CMDCA (Conselho Municipal da Criança e do Adolescente).

Atualmente, Florianópolis conta com quatro conselhos, em processo para a criação da quinta unidade, como assegura a resolução nº 231, que apresenta a média de um centro de atendimento para cada 100 mil habitantes.

“O CMDCA abriu edital para a eleição de novos conselheiros tutelares suplentes, para atuarem até 2028. O processo já está em andamento e tem finalização prevista para agosto – incluindo a eleição e a capacitação dos candidatos. A nova unidade vai atender os bairros do Norte”, explica a Secretaria Municipal de Assistência Social.

Para o coordenador Mateus Minuzzi, existem as dificuldades de municípios como Florianópolis, onde a demanda pelo serviço é alta, e a novidade é vista como uma ação positiva para o sistema de proteção  “Se conseguirmos implantar esse quinto conselho tutelar, certamente ajudará a dar mais suporte e maior inserção na comunidade, facilitando o atendimento das crianças e adolescentes, além de dar mais visibilidade e proteção às famílias”, defende Minuzzi.

O que está previsto na lei?

Avaliando as diretrizes e ordens que compõem a atuação do órgão, como o ECA, o advogado Iago Salles reforça que, perante a lei, os jovens não possuem os meios para assegurar que seus direitos sejam respeitados — seja por limitações financeiras ou até mesmo jurídicas, reforçando a relevância do conselho tutelar.

“Exerce um papel de conhecedor da realidade das famílias, harmonizador da atuação do poder público em favor da criança e do adolescente, e encaminhador quando depende de pronunciamento ou representação pelas autoridades”, complementa o profissional.

De acordo com o Artigo 24 da resolução nº 231, a autonomia da instituição deve ser efetivada em nome da população. “O conselheiro é livre para promover a fiscalização de entidades de atendimento, iniciar procedimentos de apuração de irregularidades em tais entidades ou de infrações à integridade da criança e do adolescente e, ainda, em atuação com o município, participar ativamente da elaboração de políticas públicas de proteção aos menores”, pontua Salles, que reforça o direito à vida, à saúde, à liberdade, à dignidade e à convivência familiar e comunitária como diretrizes do ECA.



Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *