Em nova coluna, jornalista da GloboNews fala sobre o desafio de lidar com a complexa pluralidade feminina, a começar pela falta de cuidado entre as próprias mulheres Mulheres escrevem artigos. Mulheres escrevem novos artigos para se defenderem das pancadas que o artigo anterior provocou. Ofensas vindas, principalmente, de outras mulheres, com agressividade. Recorrem a teorização do “feminismo seletivo”, uma expressão que já virou tendência para, de forma pejorativa, descrever quem, acredita-se, seleciona alguns aspectos das batalhas femininas.
Quando finalmente aprendemos, com provas, de que é, juntas, que vamos chegar a conquistas sólidas, estruturais, a urgência de posicionamento no ambiente digital testa nossa capacidade de olhar por diferentes perspectivas femininas.
Sentimentos complexos me invadiram no debate que sucedeu o Oscar. Enquanto saboreava a alegria com a vitória inédita de um filme brasileiro, buscava assimilar as conversas, análises e, por vezes, acusações, tendo como pano de fundo a vitória de uma jovem atriz, e não da nossa imensa Fernanda Torres, não da incrível Demi Moore. Precisamos conseguir falar de etarismo, sexismo, machismo, sem atacar, desqualificar outra mulher. Precisamos afinar essas críticas, acreditar num letramento mais afetuoso, salvo exceções, como quando estamos lidando com fundamentalistas de toda ordem.
Poderia ter sido um debate sobre mais uma atriz negra indicada que não venceu. De uma premiação que só fez o que fez quase sempre. Mas elegemos a juventude de Mikey Madson e a personagem que interpretou como centralidade dos ataques. É claro que a vitória da artista de 25 anos expõe a histórica dificuldade enfrentada por veteranas, retratada no excelente A Substância, mas desmerecer nos coloca mais para perto dos que tentam perpetuar podres poderes e distorcidos padrões. A onda odiosa fez Fernanda Torres pedir que “enviássemos apenas amor” para Madson.
Neste Carnaval, famosas criticadas pela falta de samba no pé e ausência de conexão com as comunidades das escolas pelas quais desfilaram se defenderam de ataques atacando outras mulheres que, para elas, também deveriam estar no alvo.
E o curioso é que escrevo o texto pensando no risco de ser alvo, também. Depois de tantos séculos silenciadas não podemos incorrer na autocensura, o convite é por um cuidado maior em nome de uma luta que só pode ser vencida coletivamente. Estejamos atentas ao que, me parece, tem sido frequente: um “efeito manada” de uma linha de pensamento que se cria e que acaba eleita como o posicionamento esperado de determinado “campo” de valores e comportamentos. Uma casca de banana para o ego e o desejo de ser relevante, influente, posicionada.
Reflito sobre que caminho seria possível sem que a jovem atriz ficasse tão exposta. Como sermos capazes de criticar, jogar luz sobre escuridões, sem jogar na tempestade uma de nós. É preciso aprender a lidar com as críticas, mas as críticas não precisam ser ataques quando direcionadas a uma de nós. Já fomos tão atacadas, seguimos tão atacadas nos espaços que finalmente ocupamos, na autonomia que precisa ser defendida todos os dias de nossas vidas.
Precisamos lavar mais a roupa suja dentro das nossas casas. Casas de mulheres. Casas com respeito, onde a divergência faz pensar e organizar os móveis das nossas experiências pessoais, abrindo espaço na estante para outras, diferentes das nossas. As casas fortificadas já erguidas com tanto trabalho por quem veio antes. Os diferentes feminismos precisam se olhar, se acolher e se respeitar mais. As redes sociais são facilitadoras, ou deveriam ser. As mulheres privilegiadas socialmente têm uma responsabilidade ainda maior na organização desse espaço onde caibamos todas. Há lutas individuais, demandas históricas específicas, e há um lugar onde somos todas mais fortes: no apoio mútuo. No acolhimento das dores carregadas pela outra. No olhar de mais compreensão, numa escuta mais generosa. Somos bem mais unidas e temos bem mais em comum do que imaginamos.
As redes amplificaram vozes, consciências e debates urgentes. Mas é na literatura que precisamos buscar mais conhecimento. Quando li Simone de Beauvoir um mundo se abriu. Mas quando me debrucei sobre Lélia Gonzalez, foi a minha alma que se expandiu. Ser apresentada às camadas de violência que só alcançam as mulheres negras me atravessou por um portal. Uma passagem sem volta para um universo onde a cor condiciona.
E foi na literatura de uma jornalista, de perspectiva socioeconômica e de raça bem diferentes da minha, que construí um novo marco sobre liberdade. Em A moça Tecelã, Marina Colasanti fala sobre uma protagonista que tece a própria vida, materializando seus desejos e construindo uma realidade para si sobre desejos. Autonomia feminina na veia com puro sangue de lirismo. Através dos bordados da personagem, se constrói uma metáfora de como podemos ser responsáveis pela criação de nosso mundo e realizações pessoais. O pano de fundo é um relacionamento abusivo do qual ela se desprende ao desfazer a costura daquela relação. Quem de nós, nunca?
Ao fim, o texto nos apresenta o resgate de lar interno, de uma criatividade, de uma liberdade que, todas nós, em diferentes níveis e repertórios, buscamos em diferentes cotidianos e realidades. Precisamos nos lembrar disso. Todo os dias. Na quarta de cinzas ganhei uma camiseta de uma grande amiga com a seguinte frase: cuidar é nosso trato. Bora?
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Em nova coluna, jornalista da GloboNews fala sobre o desafio de lidar com a complexa pluralidade feminina, a começar pela falta de cuidado entre as próprias mulheres Mulheres escrevem artigos. Mulheres escrevem novos artigos para se defenderem das pancadas que o artigo anterior provocou. Ofensas vindas, principalmente, de outras mulheres, com agressividade. Recorrem a teorização do “feminismo seletivo”, uma expressão que já virou tendência para, de forma pejorativa, descrever quem, acredita-se, seleciona alguns aspectos das batalhas femininas.
Quando finalmente aprendemos, com provas, de que é, juntas, que vamos chegar a conquistas sólidas, estruturais, a urgência de posicionamento no ambiente digital testa nossa capacidade de olhar por diferentes perspectivas femininas.
Sentimentos complexos me invadiram no debate que sucedeu o Oscar. Enquanto saboreava a alegria com a vitória inédita de um filme brasileiro, buscava assimilar as conversas, análises e, por vezes, acusações, tendo como pano de fundo a vitória de uma jovem atriz, e não da nossa imensa Fernanda Torres, não da incrível Demi Moore. Precisamos conseguir falar de etarismo, sexismo, machismo, sem atacar, desqualificar outra mulher. Precisamos afinar essas críticas, acreditar num letramento mais afetuoso, salvo exceções, como quando estamos lidando com fundamentalistas de toda ordem.
Poderia ter sido um debate sobre mais uma atriz negra indicada que não venceu. De uma premiação que só fez o que fez quase sempre. Mas elegemos a juventude de Mikey Madson e a personagem que interpretou como centralidade dos ataques. É claro que a vitória da artista de 25 anos expõe a histórica dificuldade enfrentada por veteranas, retratada no excelente A Substância, mas desmerecer nos coloca mais para perto dos que tentam perpetuar podres poderes e distorcidos padrões. A onda odiosa fez Fernanda Torres pedir que “enviássemos apenas amor” para Madson.
Neste Carnaval, famosas criticadas pela falta de samba no pé e ausência de conexão com as comunidades das escolas pelas quais desfilaram se defenderam de ataques atacando outras mulheres que, para elas, também deveriam estar no alvo.
E o curioso é que escrevo o texto pensando no risco de ser alvo, também. Depois de tantos séculos silenciadas não podemos incorrer na autocensura, o convite é por um cuidado maior em nome de uma luta que só pode ser vencida coletivamente. Estejamos atentas ao que, me parece, tem sido frequente: um “efeito manada” de uma linha de pensamento que se cria e que acaba eleita como o posicionamento esperado de determinado “campo” de valores e comportamentos. Uma casca de banana para o ego e o desejo de ser relevante, influente, posicionada.
Reflito sobre que caminho seria possível sem que a jovem atriz ficasse tão exposta. Como sermos capazes de criticar, jogar luz sobre escuridões, sem jogar na tempestade uma de nós. É preciso aprender a lidar com as críticas, mas as críticas não precisam ser ataques quando direcionadas a uma de nós. Já fomos tão atacadas, seguimos tão atacadas nos espaços que finalmente ocupamos, na autonomia que precisa ser defendida todos os dias de nossas vidas.
Precisamos lavar mais a roupa suja dentro das nossas casas. Casas de mulheres. Casas com respeito, onde a divergência faz pensar e organizar os móveis das nossas experiências pessoais, abrindo espaço na estante para outras, diferentes das nossas. As casas fortificadas já erguidas com tanto trabalho por quem veio antes. Os diferentes feminismos precisam se olhar, se acolher e se respeitar mais. As redes sociais são facilitadoras, ou deveriam ser. As mulheres privilegiadas socialmente têm uma responsabilidade ainda maior na organização desse espaço onde caibamos todas. Há lutas individuais, demandas históricas específicas, e há um lugar onde somos todas mais fortes: no apoio mútuo. No acolhimento das dores carregadas pela outra. No olhar de mais compreensão, numa escuta mais generosa. Somos bem mais unidas e temos bem mais em comum do que imaginamos.
As redes amplificaram vozes, consciências e debates urgentes. Mas é na literatura que precisamos buscar mais conhecimento. Quando li Simone de Beauvoir um mundo se abriu. Mas quando me debrucei sobre Lélia Gonzalez, foi a minha alma que se expandiu. Ser apresentada às camadas de violência que só alcançam as mulheres negras me atravessou por um portal. Uma passagem sem volta para um universo onde a cor condiciona.
E foi na literatura de uma jornalista, de perspectiva socioeconômica e de raça bem diferentes da minha, que construí um novo marco sobre liberdade. Em A moça Tecelã, Marina Colasanti fala sobre uma protagonista que tece a própria vida, materializando seus desejos e construindo uma realidade para si sobre desejos. Autonomia feminina na veia com puro sangue de lirismo. Através dos bordados da personagem, se constrói uma metáfora de como podemos ser responsáveis pela criação de nosso mundo e realizações pessoais. O pano de fundo é um relacionamento abusivo do qual ela se desprende ao desfazer a costura daquela relação. Quem de nós, nunca?
Ao fim, o texto nos apresenta o resgate de lar interno, de uma criatividade, de uma liberdade que, todas nós, em diferentes níveis e repertórios, buscamos em diferentes cotidianos e realidades. Precisamos nos lembrar disso. Todo os dias. Na quarta de cinzas ganhei uma camiseta de uma grande amiga com a seguinte frase: cuidar é nosso trato. Bora?
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