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Intensificação laboral, precarização das condições de trabalho e quiet quitting no serviço público
por Luiz Henrique Lima Faria
A intensificação laboral tem se tornado uma característica marcante do serviço público contemporâneo. Sob a justificativa da eficiência administrativa e da necessidade de redução de custos, servidores são frequentemente submetidos a um aumento da carga laboral sem a devida compensação, seja em termos financeiros, estruturais ou de bem-estar. Esse fenômeno, impulsionado por reformas administrativas, digitalização de processos e adequações orçamentárias, tem levado a um processo de precarização das condições de trabalho, no qual a qualidade do serviço prestado dá lugar à sobrecarga, à insegurança e ao adoecimento físico e psicológico dos servidores públicos.
A precarização das condições de trabalho se tornou parte da estratégia organizacional do serviço público, manifestando-se, sobretudo, na expansão da jornada de trabalho para além dos limites formais. Seja pela exigência de disponibilidade constante, pelo acúmulo de funções sem contrapartida salarial ou pela pressão para atender demandas urgentes sem os recursos necessários, a sobrecarga se intensifica à medida que servidores são forçados a compensar deficiências estruturais e o acumulo de erros de gestão.
Esse cenário é agravado pela cultura da culpa, um mecanismo psicológico que desloca a responsabilidade da gestão para o próprio servidor. Nessa lógica perversa, ele é levado a acreditar que sua exaustão é consequência de falhas individuais, tais como, falta de disciplina, baixa produtividade ou incapacidade de gerenciar melhor o tempo e não das exigências desumanas impostas por uma gestão que, diante do acúmulo de decisões ineficazes, vê suas opções se restringirem ao aumento da exploração dos próprios servidores. O resultado é um ciclo perverso no qual a sobrecarga se torna permanente, mascarada sob o discurso da eficiência, enquanto os trabalhadores são submetidos a uma pressão constante para manter a instituição funcionando, muitas vezes à custa de sua saúde física e mental.
Esse processo de autocobrança incessante leva muitos servidores a desenvolver quadros de ansiedade, depressão e Burnout. Paralelamente, a repressão do descontentamento se torna uma norma implícita, pois manifestar insatisfação ou questionar a sobrecarga frequentemente resulta em retaliação, marginalização ou na rotulação dos servidores como “descomprometidos” ou parte do “grupo do mal”. Esse ambiente é agravado pelo assédio organizacional como ferramenta de controle, no qual cobranças desproporcionais e comparações constantes entre o comportamento dos servidores estimulam animosidades, transformando o medo do isolamento e da exclusão em um mecanismo disciplinador, que silencia críticas e perpetua o ciclo de exploração.
Tratando, também, desse contexto, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em obras como A Sociedade do Cansaço (2010), A Agonia do Eros (2012) e Psicopolítica (2014), discute como a intensificação do trabalho no mundo contemporâneo não é imposta à força, mas internalizada pelos próprios trabalhadores, que passam a enxergar sua autoexploração como um sinal de dedicação e valor profissional. Esse modelo de exploração se torna ainda mais eficiente porque transforma a dominação em uma experiência positiva, levando os trabalhadores a se cobrarem incessantemente até o esgotamento. Sua crítica transcende a precarização material e toca nas dimensões psicológicas e subjetivas do trabalho, mostrando como a lógica neoliberal redefine a relação entre o trabalhador e o Estado.
Diante desse cenário, emerge o fenômeno da quiet quitting (demissão silenciosa) no serviço público, no qual servidores, sem abandonar formalmente seus cargos, reduzem seu envolvimento com a organização, ao mínimo necessário. Trata-se de uma resposta subjetiva à sobrecarga emocional, à falta de reconhecimento e à percepção de ausência de meritocracia, na qual o servidor se desliga emocionalmente da organização, limitando-se a cumprir estritamente as exigências formais de seu cargo. Esse comportamento reflete um desgaste profundo na relação entre instituição e servidor e evidencia o impacto da má gestão e da desmotivação sistêmica no comprometimento dos servidores.
A demissão silenciosa, embora muitas vezes interpretada como falta de engajamento, é, na realidade, um sintoma da deterioração das condições de trabalho no serviço público. Em um ambiente marcado por falta de valorização, distorções meritocráticas e exigências desproporcionais, os servidores ajustam suas expectativas e redefinem sua relação com a função pública.
Seja pela intensificação do trabalho, pela precarização ou pelo esvaziamento subjetivo do vínculo profissional, a dinâmica laboral no serviço público tem revelado um modelo insustentável, no qual a busca pela eficiência administrativa compromete a própria força de trabalho. Se a sobrecarga e a precarização são os motores desse problema, a solução exige políticas institucionais que promovam o equilíbrio entre vida profissional e pessoal, assegurem o reconhecimento das competências dos servidores.
O desafio, portanto, é reverter essa lógica perversa, visto que os danos causados pelo esvaziamento subjetivo do vínculo profissional podem se tornar irreversíveis, comprometendo não apenas o bem-estar dos servidores, mas também a qualidade dos serviços públicos prestados à sociedade. A adoção de um modelo de gestão organizacional que não perpetue práticas administrativas ineficazes, não apenas representaria uma inovação, mas também uma necessidade urgente para garantir que a gestão pública priorize não apenas a produtividade, mas também a saúde, o reconhecimento e a motivação dos servidores que sustentam seu funcionamento.
Isso exige das instituições públicas um compromisso efetivo com critérios mais rigorosos e transparentes na avaliação de gestores, reforçando a necessidade de uma valorização profissional baseada na competência e no mérito. Além disso, impõe a implementação de políticas de bem-estar e de uma estruturação adequada do trabalho, assegurando que a gestão pública esteja alinhada aos anseios da sociedade e às exigências de um serviço público eficaz, sem abrir mão de sua dimensão humana.
Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
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Intensificação laboral, precarização das condições de trabalho e quiet quitting no serviço público
por Luiz Henrique Lima Faria
A intensificação laboral tem se tornado uma característica marcante do serviço público contemporâneo. Sob a justificativa da eficiência administrativa e da necessidade de redução de custos, servidores são frequentemente submetidos a um aumento da carga laboral sem a devida compensação, seja em termos financeiros, estruturais ou de bem-estar. Esse fenômeno, impulsionado por reformas administrativas, digitalização de processos e adequações orçamentárias, tem levado a um processo de precarização das condições de trabalho, no qual a qualidade do serviço prestado dá lugar à sobrecarga, à insegurança e ao adoecimento físico e psicológico dos servidores públicos.
A precarização das condições de trabalho se tornou parte da estratégia organizacional do serviço público, manifestando-se, sobretudo, na expansão da jornada de trabalho para além dos limites formais. Seja pela exigência de disponibilidade constante, pelo acúmulo de funções sem contrapartida salarial ou pela pressão para atender demandas urgentes sem os recursos necessários, a sobrecarga se intensifica à medida que servidores são forçados a compensar deficiências estruturais e o acumulo de erros de gestão.
Esse cenário é agravado pela cultura da culpa, um mecanismo psicológico que desloca a responsabilidade da gestão para o próprio servidor. Nessa lógica perversa, ele é levado a acreditar que sua exaustão é consequência de falhas individuais, tais como, falta de disciplina, baixa produtividade ou incapacidade de gerenciar melhor o tempo e não das exigências desumanas impostas por uma gestão que, diante do acúmulo de decisões ineficazes, vê suas opções se restringirem ao aumento da exploração dos próprios servidores. O resultado é um ciclo perverso no qual a sobrecarga se torna permanente, mascarada sob o discurso da eficiência, enquanto os trabalhadores são submetidos a uma pressão constante para manter a instituição funcionando, muitas vezes à custa de sua saúde física e mental.
Esse processo de autocobrança incessante leva muitos servidores a desenvolver quadros de ansiedade, depressão e Burnout. Paralelamente, a repressão do descontentamento se torna uma norma implícita, pois manifestar insatisfação ou questionar a sobrecarga frequentemente resulta em retaliação, marginalização ou na rotulação dos servidores como “descomprometidos” ou parte do “grupo do mal”. Esse ambiente é agravado pelo assédio organizacional como ferramenta de controle, no qual cobranças desproporcionais e comparações constantes entre o comportamento dos servidores estimulam animosidades, transformando o medo do isolamento e da exclusão em um mecanismo disciplinador, que silencia críticas e perpetua o ciclo de exploração.
Tratando, também, desse contexto, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em obras como A Sociedade do Cansaço (2010), A Agonia do Eros (2012) e Psicopolítica (2014), discute como a intensificação do trabalho no mundo contemporâneo não é imposta à força, mas internalizada pelos próprios trabalhadores, que passam a enxergar sua autoexploração como um sinal de dedicação e valor profissional. Esse modelo de exploração se torna ainda mais eficiente porque transforma a dominação em uma experiência positiva, levando os trabalhadores a se cobrarem incessantemente até o esgotamento. Sua crítica transcende a precarização material e toca nas dimensões psicológicas e subjetivas do trabalho, mostrando como a lógica neoliberal redefine a relação entre o trabalhador e o Estado.
Diante desse cenário, emerge o fenômeno da quiet quitting (demissão silenciosa) no serviço público, no qual servidores, sem abandonar formalmente seus cargos, reduzem seu envolvimento com a organização, ao mínimo necessário. Trata-se de uma resposta subjetiva à sobrecarga emocional, à falta de reconhecimento e à percepção de ausência de meritocracia, na qual o servidor se desliga emocionalmente da organização, limitando-se a cumprir estritamente as exigências formais de seu cargo. Esse comportamento reflete um desgaste profundo na relação entre instituição e servidor e evidencia o impacto da má gestão e da desmotivação sistêmica no comprometimento dos servidores.
A demissão silenciosa, embora muitas vezes interpretada como falta de engajamento, é, na realidade, um sintoma da deterioração das condições de trabalho no serviço público. Em um ambiente marcado por falta de valorização, distorções meritocráticas e exigências desproporcionais, os servidores ajustam suas expectativas e redefinem sua relação com a função pública.
Seja pela intensificação do trabalho, pela precarização ou pelo esvaziamento subjetivo do vínculo profissional, a dinâmica laboral no serviço público tem revelado um modelo insustentável, no qual a busca pela eficiência administrativa compromete a própria força de trabalho. Se a sobrecarga e a precarização são os motores desse problema, a solução exige políticas institucionais que promovam o equilíbrio entre vida profissional e pessoal, assegurem o reconhecimento das competências dos servidores.
O desafio, portanto, é reverter essa lógica perversa, visto que os danos causados pelo esvaziamento subjetivo do vínculo profissional podem se tornar irreversíveis, comprometendo não apenas o bem-estar dos servidores, mas também a qualidade dos serviços públicos prestados à sociedade. A adoção de um modelo de gestão organizacional que não perpetue práticas administrativas ineficazes, não apenas representaria uma inovação, mas também uma necessidade urgente para garantir que a gestão pública priorize não apenas a produtividade, mas também a saúde, o reconhecimento e a motivação dos servidores que sustentam seu funcionamento.
Isso exige das instituições públicas um compromisso efetivo com critérios mais rigorosos e transparentes na avaliação de gestores, reforçando a necessidade de uma valorização profissional baseada na competência e no mérito. Além disso, impõe a implementação de políticas de bem-estar e de uma estruturação adequada do trabalho, assegurando que a gestão pública esteja alinhada aos anseios da sociedade e às exigências de um serviço público eficaz, sem abrir mão de sua dimensão humana.
Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
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